Vivemos em tempos de guerra.
Tenho sorte de estar no presente momento escrevendo um texto pra internet do conforto do meu quarto em uma cidade de região metropolitana, enquanto atrocidades ocorrem pelo mundo. Gaza, Ucrânia, Irã, outros. Mas no campo da ficção, algo me atrai em ler dramas de guerra.
Durante minhas férias em maio, eu decidi por usar meu tempo livre durante as tardes para assistir uma obra que fala justamente sobre temas de opressão política e conflito armado, porém em um setting de drama espacial com pitadas de fantasia: Star Wars - Andor.
Surpreendentemente pra algo derivado de Star Wars, Andor me cativou com sua narrativa sobre revolução que se deu ao trabalho de dar profundidade emocional aos protagonistas, e ter uma mensagem política revolucionária bastante pungente. Tenho minhas ressalvas sobre a série (que talvez valham um post aqui alguma hora dessas), mas ao terminar as duas temporadas, só um pensamento só ecoava em minha cabeça.
“Caralho, isso aqui é só MS Gundam with Extra Steps”
Antes de continuar, preciso colocar algumas “credenciais” na mesa. Eu sempre me considerei um fã do gênero Mecha. Neon Genesis Evangelion é até hoje meu anime favorito, nasci e cresci babando nos robôs de Super Sentai e Power Rangers, fiz questão de ver Círculo de Fogo nos cinemas. Porém, até recentemente, minha relação com a série Mobile Suit Gundam, que é considerada uma das bases do gênero como conhecemos hoje, era muito distante.
Tentei assistir Reconguista in G enquanto saía e acabei desistindo em poucos episódios. Também vi meia dúzia de 08th MS Team, não fui muito com a cara (mais tarde descobriria que o que me faltava era o contexto da Guerra de Um Ano), vi Iron Blooded Orphans em doses muito homeopáticas até terminar. Meu arrebatamento de vez viria com The Witch From Mercury, de 2022. Fiz o pedido do meu primeiro Gunpla, a XVX-016 Gundam Aerial HG pouco depois de assistir o último episódio da primeira temporada. Mas ainda assim, demorei para assistir O Gundam, Mobile Suit Gundam, também conhecido por Gundam 0079, em referência ao ano em que foi ao ar, e ao ano em que a história se passa.
Decidi corrigir essa lacuna na minha carteirinha de Mecha Otaku logo depois de terminar Andor.
O ano é 0079 do Universal Century.
“Meio século se passou desde que a humanidade começou a mover sua população excessiva para gigantescas colônias espaciais em volta da Terra. É uma segunda terra natal para a humanidade, onde as pessoas nascem, crescem, e então morrem”
O monólogo sobre o estado atual do mundo é a primeira coisa logo após a abertura típica de anime dos anos 70 (toda ao som de metais, e repetindo várias vezes o nome do robô principal pras crianças saberem qual boneco pedir para os pais). A chicotada de mudança de clima, que já parece grande só com a parte citada acima, fica ainda mais intensa. Logo em seguida, o narrador conta que o mundo atualmente está em guerra, entre a Federação da Terra (que tem o controle político da Terra em si e de maior parte das colônias espaciais) e o Principado de Zeon (um grupo de colônias distantes, cuja declaração de independência deu início ao conflito). No primeiro mês de batalha, metade da população humana em ambos os lados havia sido perdida, devido ao conflito armado, e principalmente a um atentado de Zeon contra a Federação, onde uma colônia espacial inteira foi derrubada no planeta. Ainda assim guerra não acabou, pelo contrário, está a oito meses em um impasse onde nenhum lado consegue avançar.
Esse é o primeiro minuto do anime. Você não sabe o nome dos protagonistas, não sabe onde eles estão, tem alguma noção talvez da cara deles se estivesse prestando atenção no tema de abertura. E o anime já mostrou os horrores do conflito armado, e que suas consequências atingem mais que os líderes, mais que os generais e os combatentes.
Mobile Suit Gundam não é um anime novo, obviamente. Eu não sou a primeira nem vou ser a última pessoa a escrever sobre, então é muito difícil não chover no molhado. Dizer que mudou a indústria, que quase flopou, etc etc, tudo isso já foi dito, então quero focar mais nas impressões que a série deixou em mim. Sempre soube da existência do meme “war is bad” relacionado à série, e ter visto Witch (abertamente feminista, com um romance lésbico como um dos focos da série) e Orphans (onde nós vemos os protagonistas tomarem os meios de produção numa revolução armada no episódio 3) deveria ter me preparado para a mensagem política que Gundam carrega, mas em momento algum eu esperaria algo que é ao mesmo tempo muito direto e cheio de nuances no literal primeiro minuto do primeiro episódio. E felizmente não acaba por aí.
“War is Bad” “Wow Cool Robot”
Uma das nuances que a série mostra que me deixou boquiaberto foi a clareza com a qual é mostrada a futilidade da guerra, a pequenez dos combatentes perante ao grande esquema das coisas, mas também como as ações individuais tem consequências pro futuro.
Ainda no primeiro episódio, o nosso protagonista, Amuro Ray, pilota o Gundam quase por acidente, pois estava procurando abrigo durante um ataque de Zeon. O Gundam RX-78-2 se levanta pela primeira vez para se defender, e com seu icônico Beam Saber destrói os dois robôs inimigos. Mas apesar da trilha sonora heróica e a coreografia com vibes de filme de samurai, a cena deixa um gosto amargo na boca. A explosão do MS-06 Zaku II do inimigo destrói a parede da colônia espacial, e faz com que o vácuo comece a puxar o ar, pessoas e veículos para o espaço.
Mas mais importante que isso, toda vez que vemos dentro da cabine dos robôs, as expressões são sempre de pânico e ansiedade, tanto de Amuro quanto dos dois pilotos de Zeon. E isso é uma constante durante a série. Por mais que o Principado de Zeon tenha paralelos com o Japão Imperial e uma estética dos países do Eixo, a série ainda tempo pra mostrar alguma humanidade nas pessoas que estão vestindo o uniforme. Desde encontros cordiais entre protagonistas e antagonistas em áreas neutras, até uma breve cena onde pilotos sem nome demonstram medo da morte, ou o desejo de voltar para casa como herói. E do lado inverso, por mais que nossos personagens protagonistas e ponto de vista sejam parte da Fedreação, com frequência nós vemos soldados de forma antagonística, sendo em coisas maiores como superiores fazendo pouco caso das necessidades da White Base (a nave-base militar que acompanhamos durante a série) negando suprimentos, ou também mostrando soldados pilhando casas e maltratando civis enquanto estacionados em uma cidade que não é campo de batalha ativo.
Também não existem Heróis em Mobile Suit Gundam. Amuro (apesar dos poderes de Newtype) só pilota o Gundam por coincidência, pois era filho do principal engenheiro, estava próximo na hora e tinha lido o manual. Char Aznable, nosso personagem rival (mais sobre ele mais tarde), apesar de possuir a alcunha O Cometa Vermelho, durante parte da série é rebaixado por comandar uma operação que falhou. As ações de ambos não são o ponto principal que causaria o fim da guerra ao final da série. Após uma operação bem sucedida que custou a vida de um membro da White Base que acompanhamos desde o começo, a tripulação escuta de seus superiores que ele está recebendo uma promoção militar de dois Ranks. E só. Não há muita fanfarra, não há escolhidos, só a realidade dura.
Vilões, por sua vez, existem. Gundam não tem o mínimo pudor ou vergonha de mostrar o quão cruel a Família Zabi, que governa o Principado de Zeon, pode ser, especialmente tendo em vista que a primeira coisa que vemos são suas tropas de Zaku e o Colony Drop que extinguiu a cidade de Sydney do mapa. Mas é apenas a violência armada que os põe como vilões da história. O Principado de Zeon é claramente fascista, não apenas pelo seu visual (uniformes, armamento, o fato da bandeira de remeter à bandeira da Alemanha nazista). Após uma perda de um membro da família, nós vemos o funeral, acompanhado de um discurso feito para inflar o sentimento nacionalista anti-Federação na população, terminando com o líder militar Gihren Zabi entoando a plenos pulmões “SIEG ZEON” repetidamente, sendo logo acompanhado pela multidão, em uma cena de dar arrepios. O mesmo Gihren seria mais tarde comparado a Adolf Hitler por seu próprio pai, ao revelar quais seriam seus planos para um eventual pós guerra.
A forma que ações mesquinhas ou muito pessoais de alguns personagens afetam a narrativa também é interessantíssima de se ver. O equilíbrio da guerra, estável por meses, é quebrado porque um soldado sem nome decidiu tentar um ataque surpresa passando por cima das ordens de seu superior. A inveja e o medo de perder poder político dentro do exército faz com que o comandante M’Qube desvie Mobile Suits novos, causando mais para frente a morte de um dos poucos comandantes de Zeon que conseguiu superar o poderio militar da White Base. Um passeio casual em uma zona neutra faz com que Amuro conheça Lalah Sune, e encontre Char pessoalmente pela primeira vez, encontro esse que mudaria o destino de sua vida, e de certa forma de todo o Universal Century. Sempre existe a impressão de que o bater de asas de uma borboleta vai sim gerar um furacão no mundo de Mobile Suit Gundam.
Breve comentário, mas é interessante notar também o quão Gundam 79 não é eurocentrado. Se me lembro bem, quase nenhum on nenhum episódio que se passa na Terra acontece em qualquer país da Europa (me corrijam se eu estiver errado), a base principal da Federação é na Amazônia, e a bandeira inspirada na bandeira do Brasil, e o Colony Drop do primeiro episódio acontece na Austrália. Até em questão de nacionalidades, os personagens com raízes na Terra não são europeus (Amuro é genericamente Norte Americano, alguns argumentam que até que Mexicano. Lalah Sune tem características claramente indianas, e temos um piloto chamado Ryu José).
“Se esse é o destino, definitivamente é um destino cruel”
Escrevi tudo isso até aqui somente sobre como Mobile Suit Gundam trata de temas de guerra, mas há muitas outras camadas ainda na narrativa, que são trazidas à superfície carregadas por um elenco de personagens amplo, surpreendentemente bem trabalhado, e memorável (a despeito dos nomes famosamente esquisitos da franquia, como Fraw Bow, Sleggar Law e Ramba Ral, por exemplo).
Dentre a tripulação da White Base, acho que não tem lugar melhor pra começar do que falando do nosso protagonista, Amuro Ray, principalmente porque ele é o grande símbolo da inocência da juventude na narrativa, e como essa inocência é tomada pelo mundo em guerra sem piedade. No começo da história, Amuro é apenas um adolescente de 15 anos aficionado por computadores e máquinas, com alguma dificuldade de entender as pessoas e ser entendido (se isso te soa familiar, já entramos nisso já já).
Após se alistar no exército da Federação basicamente contra a própria vontade, Amuro bate cabeça incessantemente com seus superiores, fugindo da White Base, se recusando a pilotar o Gundam, fazendo birra e respondendo atravessado. Se você já assistiu Neon Genesis Evangelion e achou essa descrição familiar, é porque é. A diferença é que Shinji Ikari nunca se torna um soldado, como acontece com Amuro Ray. Com o passar dos episódios, nós o vemos sair de um menino que não consegue conceber puxar o gatilho de seu Mobile Suit contra alguém fora de um robô, para um veterano de guerra que não hesita mesmo estando fundo em linhas inimigas pilotando uma unidade altamente danificada prestes a deixar de funcionar. Mas tornar-se um soldado, por mais que faça que Amuro amadureça e perca a inocência infantil do começo da série, nunca o torna uma pessoa amarga ou completamente deprimida ou perdida. O Ray em seu sobrenome é provavelmente porque ele é como um raio de sol, sempre preocupado com sua família na White Base, com a humanidade do inimigo, sem perder nunca seu compasso mora. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”, acredito que seja a frase que define.
Há, porém uma característica que conflita com essa gentileza de Amuro, que é sua incapacidade de compreender os outros, e de ser compreendido também. Outros membros da tripulação com frequência expressam sua insatisfação em lidar com ele, seja porque não diz as coisas de forma exatamente clara, ou não diz de forma alguma, seja porque parece que ignora instruções, ordens e conselhos. Durante a série muitas vezes vemos Amuro sozinho, dando manutenção ao Gundam ou programando seu computador de bordo, ou procurando peças para upgrade. Mais tarde, descobrimos que parte desse comportamento e suas habilidades de piloto se devem ao fato dele ser um Newtype.
Newtypes são um grupo de pessoas com uma série de habilidades de observação e psíquicas (percepção espacial aguçada, capacidade de sentir a presença de outros Newtypes nas proximidades, comunicação telepática com outros Newtypes), o equivalente de Gundam das pessoas force sensitive de Star Wars. No entanto, todos os Newtypes que conhecemos na série tem também em comum a dificuldade de socialização e de ser compreendidos pelos Oldtypes. O espectador que for um pouco mais astuto logo faz a conexão que existe um paralelo claro entre ser um Newtype e neurodivergências. Amuro por exemplo exibe características próximas às de uma criança autista, por exemplo. É um pouco incerto o quão proposital essa comparação era em 1979, quando a série foi ao ar, mas diálogos e acontecimentos de séries futuras no universo deixam claro que se essa não era a ideia, certamente passou a ser.
Contudo, não é simplesmente um poder mágico de ficção científica como a Força, ou o Cosmo de Cavaleiros do Zodíaco ou algo assim. Dentro da série, há implicações sociais e políticas em ser um Newtype. A percepção espacial faz com que sejam ótimas escolhas para pilotos de Mobile Suits, sendo cobiçados como armas de guerra. Há também o fato que os Newtypes são adaptados à vida no Espaço, sendo a criação do Principado de Zeon no início uma revolução com o objetivo de emancipação para que houvesse um Estado onde os Newtypes pudessem ser livres. Alguns personagens os veem como um grande mistério, já que o fenômeno não é bem compreendido, outros usam como um nome para provocar alguém. Nas palavras da própria série, os Newtypes são “o próximo passo da evolução da raça humana, adaptados a morar no espaço pois são capazes de se comunicar sem utilizar palavras”. Nós espectadores, junto com o protagonista, aprendemos o potencial de ser Newtype, quando ele se encontra com Lalah Sune, no último terço da série.
Lalah Sune é um dos personagens mais importantes da série, apesar de seu relativamente breve tempo de tela, e de só aparecer próximo ao final da série. Apesar de Gundam ter desde sua concepção personagens femininos com muita agência, Lalah é justamente o contrário, sendo definida pela falta dela, estando presa ao exército de Zeon e à vontade de seu comandante e companheiro (em múltiplos sentidos) Char Aznable. Mas Lalah é a primeira pessoa fora Amuro que temos que confirmação que é Newtype, e ainda por cima alguém com tanto contato com seus poderes que traz um tom esotérico para a série que não existia antes de sua aparição.
Essa primeira aparição também é simbólica e quase onírica, onde ela e Amuro observam a queda de um cisne durante uma chuva pesada que o forçou a procurar abrigo no casebre onde ela estava. As palavras que os dois trocam fazem pouco sentido, mas o Newtype Flash entre os dois faz com que eles mesmo assim se conheçam, se entendam, e formem uma conexão. Porque ser Newtype é mais do que qualquer coisa, sobre Empatia, sobre abrir o peito para o outro e tentar compreendê-lo. O que faz o próximo encontro dos dois fortemente trágico, quase irônico, quando Lalah e Char passam de jipe juntos, e ajudam a desatolar o jipe do Amuro. A cena acaba com o amargo gosto do “em outra situação, eles poderiam se dar bem”.
Lalah é desde o começo uma personagem condenada pela narrativa. Desde a simbologia da morte do cisne, toda vez que ela aparece na tela parece que o ar fica mais denso com a tensão. Cada frame é um passo da marcha até o seu destino cruel. E então finalmente acontece.
Eu peço, se você leu até aqui e não pretende assistir Mobile Suit Gundam, por favor, ao menos abra o YouTube e veja a cena do filme compilação Encounters in Space,“The Tragedy of Lalah”. É uma cena muito bonita e também muito melancólica, e me emocionou de forma muito intensa da primeira vez que eu vi (e me emociona de novo toda vez que eu vejo).
E depois disso, Lalah Sune passa de ser condenada a assombrar a narrativa, pelo resto do Universal Century. É muito comum em histórias de ficção, especialmente ficção científica a tragédia de uma personagem feminina ser usada para avançar o desenvolvimento do personagem que era seu par (o tal do fridging), mas não é isso que acontece. A ausência dessa personagem que não tinha necessariamente a maior importância política pro universo reverbera durante muito tempo, até em acontecimento de Gundams futuros. Se o bater da asa de uma borboleta causa um furacão, o que pode causar a queda de um cisne?
Para fechar a trindade Newtype, não posso deixar de falar do antagonista, o rival de Amuro, o Cometa Vermelho, Char Aznable. E pra começar, queria deixar um aviso. De acordo com o Ameblo, onde eu escrevo primeiro esse texto, até agora doram escritos aproximadamente 14600 caracteres, desde o começo do post até agora.
Eu poderia ter escrito todos esses quase 15000 caracteres sobre Char Aznable. Facilmente. Char é um personagem fascinante nesse nível. Mas eu prometo me controlar.
Nós somos apresentados a Char Aznable logo no primeiro episódio, comandando uma operação militar de espionagem, com o objetivo de levantar o projeto secreto da Federação. Logo de início, Char se mostra um capitão respeitado pelos seus soldados, e apesar da operação logo sair do controle, consegue manter a cabeça fria, tomar as rédeas da situação, e trazer alguns de seus homens de volta para casa. Vemos também logo em seguida suas habilidades como piloto, sendo o primeiro, e durante algum tempo na série o único, que consegue combater o Gundam da Federação, por mais que seja uma arma muito mais avançada que qualquer um dos Mobile Suits de Zeon atuais. Sua proeficiência em estratégia militar o coloca em bons termos com os seus superiores, em especial os membros da Família Zabi, tendo assim uma posição também privilegiada na esfera política do Principado. Nada disso no entanto era inesperado. Querendo ou não, assisti Gundam em 2025, quando já está mais que consolidado na cultura Otaku (e culutra popular em geral) como um grande clássico, então já tinha ouvido falar o quão Char Aznable era um personagem legal, sei que ele ganha merchandizing até hoje, e há a lenda que o Cometa Vermelho é um dos maiores, se não o maior, rival de todos os tempos, sendo até parte do que me levou a assitir Gundam 0079.
Mas Char Aznable é uma farsa. A máscara e o capacete com chifres escondem um homem que vive uma grande mentira. A lealdade aos seus homens e liderança? Char não divide os mesmos ideais que o exército de Zeon e não está realmente interessado na guerra em geral. O piloto ás? Em vários momentos o vemos com medo de enfrentar a White Base e o Gundam, consciente da superioridade dos armamentos deles, e muito do seu sucesso em combate vem de pilotar seu Zaku-II customizado de forma imprudente e quase suicida, auxiliado pelos seus poderes latentes de Newtype. A influência política? Apenas um meio de se vingar da família Zabi, que matou seu pai durante o início da revolução, e tomou o poder da República de Zeon instalando seu regime fascista e violento.
E ao observar um pouco mais de perto, percebemos que mesmo isso tudo não é completamente verdade. Char se abala de forma genuína quando seus subordinados morrem em combate. Apesar do ódio pelos Zabi, ele ainda cria uma relação próxima de amizade (leia como quiser) com o irmão mais novo da família, Garma. O próprio plano de vingança é abandonado durante algum tempo ao entrar pro Esquadrão Newtype e conhecer Lalah Sune, a primeira pessoa que o compreendeu de verdade, e uma das poucas que o amou de forma incondicional. A mesma Lalah que ele levaria pro campo de batalha e usaria como arma, mesmo acreditando que Zeon deveria ser uma nação de liberdade dos Newtypes.
Em resumo, Char Aznable é uma pilha de incongruências, alcunhas, mentiras e máscaras no formato aproximado de um homem. Isso permite que o espectador, e mais tarde outros autores também, tenham visões e interpretações muito diferentes do personagem. Ele é um sociopata? Uma fraude? O maior rival de todos os tempos? Um blorbo from my shows? Depende do que você consegue tirar da história, ou do que você quer focar. Minha interpretação favorita é de como Char Aznable é um homem que é definido e motivado por ter perdido tudo na vida. Seu país, sua família, seu nome, sua irmã, seu melhor amigo, o amor da sua vida. Char perdeu tudo isso, parte por crueldade do destino, parte por consequências dos seus atos, parte por escolha própria. Mas mesmo assim, ele precisa seguir adiante, porque ainda há muito o que ser feito até que os Zabi caiam e os Newtypes possam ser livres. E se alguém precisa perder mais algo para que isso aconteça, que seja ele. Minha segunda interpretação favorita é que ele é bissexual, bottom, e uma Loira tóxica, mas isso não vem ao caso agora.
Antes de terminar de falar sobre os personagens, tem duas coisas que eu queria trazer a tona. A primeira é que muito pouco, quase nada do que eu falei acima sobre esse trio de personagens é dito em voz alta ou falado em pensamento pro espectador. Tudo isso tem que ser interpretado das reações dos personagens, que muitas vezes são silenciosas, e vão ser visíveis somente em atitudes deles no futuro. Também há muitos casos onde um personagem diz uma coisa, mas suas ações demonstram outra coisa completamente, e fica a seu cargo fazer a ponte entre tudo. Mesmo sendo originalmente para crianças, Gundam nunca assume que quem está assistindo é bobo, ou que não vai estar prestando atenção, muito pelo contrário, você consegue tirar muito mais coisas do que você viu se estiver ligado.
A segunda é que por mais que eu tenha focado no trio Amuro-Char-Lalah, todo o elenco tem seus momentos de brilhar. Menção honrosa pros personagens Kai Shiden, que começa como o rival aliado que provoca o protagonista e é meio covarde, mas logo cresce e se torna alguém confiável (com uma boa dose de trauma no meio), e Sayla Mass, que além de ser uma personagem que traz um que de mistério e desconfiança pra tripulação da White Base no começo, também evolui de Bridge Bunny para piloto de caça de combate durante a série (em comparação, Star Wars vai ter uma piloto de caça mulher só em Clone Wars de 2003).
Amuro, não olhe para trás
Assistir Mobile Suit Gundam foi uma montanha russa de sentimentos. É a grande definição da frase “pedi uma refeição e recebi um banquete”. Agora eu consigo entender o motivo da química cerebral de tanta gente ter mudado na época, afinal a minha também mudou. O anime se recusa o tempo todo a ser pouca coisa. Se recusa a ter personagens simples e óbvios, se recusa a ser apolítico, se recusa a não ser chocante de vez em quanto, e a não ser tocante também. É uma obra atemporal.
Por ter sido tão influente também, ter assistido me fez criar um novo apreço a obras que já eram queridas, como Neon Genesis Evangelion, por exemplo, porque agora eu sei de onde elas vieram. Hideaki Anno nunca escondeu sua inspiração e sua paixão pela obra, ver o quanto de Amuro tem no Shinji faz eu olhar o personagem com outros olhos, e consigo ver que Kaworu Nagisa e Lalah Sune não estão muito distantes um do outro, entre outras coisas. Ao mesmo tempo, com outras obras dá pra ser mais crítico. Attack on Titan, por exemplo, bebe de engasgar na estrutura de conflito político de Gundam e adiciona uma pitada de horror (que é o ponto forte da série). Com a valentia de Gundam de colocar sua mensagem política anti-guerra e anti-fascista em primeiro plano em vista, chega a dar desgosto olhar pra AoT tratando de temas sérios da vida real como o Holocausto sem nenhum cuidado ou autocrítica, e falando baixinho meio escondido com vergonha que “pô, o Japão devia ter exército se pá, heim, não sei”. Zeke Yeagar ser o pior Char Clone da história da humanidade também não ajuda a série de forma alguma.
Por mais que o final da série feche tudo bem amarradinho, a forma com que o Universal Century é construído deixa um gostinho de quero mais depois dos créditos. Dá vontade de saber o que aguarda aqueles personagens, aquele mundo no futuro. Quais são as consequências políticas de tudo o que aconteceu aqui? E as consequências emocionais pra tripulação da White Base? Foi impossível não começar Zeta Gundam logo em seguida, especialmente porque também sempre ouvi que Zeta é a sequência perfeita.
E rapaz, não é que essa galera tava certa? Mas fica pra outro dia o que eu penso sobre Zeta (até porque eu penso muita coisa).
